terça-feira, 27 de maio de 2025

A alma da Menina entre muros

 


A Menina, neste dia, não queria conversa com seus amigos preferidos, o Prédio e o Rio, e não sabia exatamente qual o motivo, afinal, ela veio parar ali na construção aos pedaços, porque tinha certeza que a cidade gostaria de ter nos escritos as lembranças do que fora aquela fábrica. Apesar dos desmandos. 

Sentia-se encabulada e então resolveu rodar por entre muros sorrateiramente, como as lembranças que ela tinha. Voltou pequena, mas a sua alma tinha dentro uma vida inteira que ora se acabrunhava, ora se engrandecia, mas era mesmo bem difícil viver ali, entre tantos acontecimentos mal costurados, feridas autônomas e vorazes na lembrança. 

Achou melhor pegar o elevador e descer, pois a casa onde nascera estava ao lado do prédio e restava inteira. Quando entrou na coluna que antes abrigava o imenso elevador, teve uma tontura forte, uma vez que entrou no túnel do tempo e a faina do dia a dia da fábrica lhe parecia muito real. Imediatamente começou a reconhecer os operários que com ela circulavam naqueles tempos em que, por um período, pode trabalhar na fábrica. Carros cheios de matéria prima entravam e saiam misturados a embalagens e aquele cheiro característico de um ambiente de agito e organização. 

Mas o melhor deste insight foi a oportunidade de entrever as conversas com os operários, muitos dos quais a carregaram no colo, empurraram o carrinho de bebê até a beira do Rio, quiçá apontando quais travessuras ela poderia fazer por ali, quando crescesse. Acho que alguns velaram seu sono, uma vez que a Menina não gostava de sair do seu reduto desde bebê. Assim, os outros iam e ela ficava com quem ali estivesse para tomar conta dela. Pensando bem, era muito bom ser criança e filha do patrão. 

Chegou finalmente no térreo e percebeu que estava corada e já não se sentia tão aborrecida. Desencorajada, deu apenas uma olhada na casa por fora e, de repente, sentiu uma vontade muito grande de rever seus amigos. Correu até o Rio que se acalmou e esgarçou largamente suas águas para que nelas a Menina se visse refletida, e, ao seu lado, altaneiro, as ruínas do Prédio se abrindo em sorrisos. Pensou, afinal, que era muito bom estar ali, mesmo não sendo mais a filha do patrão e descobriu, mais uma vez, que é uma benção poder eternizar estes dois amigos carinhosos.

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